Como tudo na vida, a serendipidade é uma coisa que construímos, ainda que a própria definição nos remeta para o "acaso" das coisas, de encontrarmos coisas boas, por "acaso". O acaso vive da forma como vivemos, da energia com que vivemos, do que cultivamos interior e externamente. O acaso somos nós que o fazemos, mesmo que inconscientemente, atrevo-me a dizer.
E por que motivo comecei esta "publicação" assim (?), se o vídeo que partilho (muito) abaixo é um documentário do Herzog (?) Ora, precisamente por resultar de um conjunto de coisas boas que...pareceram por "acaso".
Recuemos.
Tenho uma relação complicada com as montanhas, desde criança. E acredito que estou a pacificar-me com elas há alguns anos, ainda que o apelo ande a conversar comigo há algum tempo. Nasci na zona da mais alta e bela montanha de Portugal, na da Serra da Estrela. Sou egitaniense por "acaso". Os meus pais não têm raízes lá mas conheceram-se naquela zona, por questões de trabalho e pelo "trabalho" ficaram por lá. Ainda lá estão. Já não trabalham.
Sou filha de uma transmontana e de um beirão. Podia ter nascido no Porto – cidade que sempre senti como “casa”? Costumo brincar que não tive tempo de vir nascer ao Porto (de onde a minha mãe acabou por sair), ainda que tenha dado umas valentes horas de trabalho de parto à minha querida mãe.
Um belo amigo costuma dizer seriamente, “Ui, transmontanos têm aquele pulso forte, e que teimosos que são, e os beirões? Ui, são malucos.” [que ninguém se sinta ofendido com este comentário, nesta era de ofensas sérias e descontextualizações]
Vivi no interior profundo, quando não era “cool” falar-se e recriar-se o tradicional e as tradições. Vivi em Figueira de Castelo Rodrigo, onde as memórias construídas lá falam de cegonhas brancas enormes e acarinhadas por todos, da estrada para Escalhão e do calor abrasivo à medida que subíamos em zigzag para Trás-Os-Montes, onde estão os meus avós, os únicos que sempre conheci e me conheceram. O isolado Freixo de Espada a Cinta, terra estranha que nunca conseguia perceber o que provocava em mim, o esverdeado do Douro que acompanha a turística Barca D’Alva, e todos os “esses” próprios da estrada, os enjoos da minha mãe nas viagens intermináveis, o escuro da noite e o recolher encolhido na parte de trás do carro. As laranjas à beira da estrada, o monte que se avista e sabemos que é Espanha, a emoção de ser outro país, ainda que do outro lado do rio, ainda que a crescer perto da fronteira. A secura e as temperaturas elevadas no Verão, o frio gélido e seco dos Invernos, ora chovesse copiosamente, ora gelasse repentinamente. Os Natais em casa dos vovós. A lareira, o jardim, o chorão que tanto chorar me fez quando teve de ser … adormecido. Os montes enormes e secos, lá ao longe, aqui ao perto, por todo o lado. As memórias da vegetação queimada no Verão. O cheiro.
E a montanha, elemento sempre por ali por perto… E que a partir de determinada altura, me assustava e me afastava, de alguma forma.
Passei parte da infância e a adolescência em Pinhel, uma terrinha entre a Guarda e Vilar Formoso, já na fronteira com Fuentes de Oñoro, Espanha. Nasci em 1985. Os finais de 80 e os 90 passaram-se neste interior todo. E na altura, não gostava. Os meus pais não eram os maiores apologistas e adeptos do que nos rodeava, nunca apreciaram nem desfrutaram da natureza toda à volta. Sempre demonstraram vontade em sair dali, as expectativas foram alimentadas, sempre, nesse sentido. 2016: eles continuam a viver lá. Já disse, não já?
A internet estava a “chegar” e a ser acessível, havia Telepac, por carregamentos, e o saldo sempre a desaparecer e a almofada que se punha em cima do modem para os pais não ouvirem o “pééééététététéééééé” da ligação para ir para o (m)IRC. Os nicks, os OP’s, “dd tc? K idd?”
Ainda tenho amigos que conheci através desses primeiros chats.
Todas as saídas dali eram bem-vindas. A internet, na altura (e acredito que ainda agora para toda a gente) era uma forma de aceder ao que não era possível, estar um bocadinho mais próxima do que, na altura, fazia sentido para mim. E de fugir do que não fazia sentido. E a montanha não fazia sentido. A montanha simbolizava todo o isolamento do qual queria fugir.
E essa recusa acontece até 2003, altura em que a maioria saiu para ir estudar. Coimbra, Porto, Lisboa, Castelo Branco, por aí fora. Saímos. Uns continuaram a ir por aí fora, outros voltaram. Muitos voltaram. Muitos quiseram voltar. Muitos querem voltar, agora. Continuo sem querer voltar, já. Mas quero voltar à montanha. Fazer as pazes com ela, até porque está sempre lá, ela não se zanga nem amua.
O processo de pacificação já vem acontecendo há anos. Mas nunca senti o apelo tão forte de tudo desde a viagem às Cinque Terre e algumas caminhadas por aqueles trilhos. Montanhas simpáticas e baixinhas. Mas acredito que todas as montanhas fazem-nos pensar na imensidão da vida e na sua impermanência. Nunca estive em montanha nenhuma além da Europa e nunca nenhuma acima dos 5 mil metros. Andei de teleférico tremelicante no Monte Titlis, nos Alpes suiços, e já me senti uma aventureira. Entrei em grutas de gelo, registei esses momentos com orgulho. Fiz um trilho de uns 400m de altura em Itália e se há algum lado de alpinista em mim que só quer chegar ao topo, veio ao de cima. Superei as exigências do calor daquele dia, agarrei-me às pedras e às pouquinhas cordas que apareciam durante o trilho e tentei não desfocar do calcar e enraizar bem. Um trilho minúsculo de Manarola até Riomaggiore. De fazer rir qualquer caminhante ou praticante de trekking (não sabia que a origem da palavra era sul africana).
As montanhas, mais do que falarem connosco, fazem-nos falar com o silêncio que esquecemos ter dentro de nós e impõem-se às várias vozes e inquietações que vivem por cá.
As montanhas têm a forma de mãos em prece, ouvi há pouco tempo (numa bela conversa com esta bela amiga, amante e conhecedora de montanhas há uma vida). As montanhas são oração para qualquer ateu.
As montanhas, as montanhas.
Lugares de contemplação, encontro, reunião, isolamento, consciência.
E não acerca de caminhadas, mas acerca do fascínio das montanhas e da atracção que elas suscitam no Homem, que quer sempre mais e superar-se, um documentário recomendado, “The Dark Glow of The Mountains”, de Werner Herzog.
Alguém que me é muito querido e me conhece de forma transparente disse-me há dias,
“A viagem não começa no destino”.
Há quem prefira a viagem até lá, o processo, o todo, tudo, seja lá o que esse tudo for. Há quem prefira o destino, chegar lá. Há os caminhantes e os montanhistas, os atletas. Há várias motivações. E sobre os caminhantes, dizia David Thoreau (obrigada, amiga!), no “Caminhada”:
“Encontrei na vida somente uma ou duas pessoas que entendiam a arte de Caminhar, ou seja, a arte de dar caminhadas, e que tinham um talento especial para vaguear. Na nossa língua, o termo saunterer, sinónimo de “caminhante”, tem uma raiz admirável: remete para “as pessoas livres que vagueiam pelo país, na Idade Média, e que pediam esmolas para ir à la Sainte Terre”, à Terra Santa. Não tardou que as crianças exclamassem: “Lá vai um sainte-terrer!”, um vagabundo sem eira nem beira, rumo à Terra Santa. Aqueles que nas suas caminhadas nunca alcançam a Terra Santa, embora afirmem o contrário, não passam de meros vagabundos e de gente ociosa; mas os que lá vão são saunterers no bom sentido do termo, tal como o entendo. Alguns, contudo, atribuem a origem da palavra à expressão francesa sans terre, sem terra nem lar, que, portanto, em boa verdade, quer dizer gente sem casa a que chamar sua, mas que se sente em casa em todo o lado. Pois é este o segredo da errância bem sucedida. Um homem que não sai de casa todo o dia pode ser o mais errante de todos, e um sem-terra pode não ser mais errante do que o sinuoso rio que procura persistentemente o caminho mais curto para o mar. Mas eu prefiro a primeira suposição, que me parece a origem mais provável do termo. Pois todas as caminhadas se assemelham a cruzadas pregadas por um tal Pedro, o Eremita, que há em nós, para que partamos e resgatemos esta Terra Santa das mãos dos Infiéis.
(…)
Até na caminhada mais curta devíamos partir talvez movidos pelo espírito da eterna aventura, sem retorno à vista, preparados para enviar para os nossos reinos desolados somente os nossos corações embalsamados, quais relíquias. (...) ”
E porque o desabafo já vai longo,
"422. As montanhas são a prova de que até a terra quer chegar ao céu." ("Para onde vão os guarda-chuvas", Afonso Cruz - fragmentos persas)