Tenho uma amiga que me envia por email alguns textos do António Guerreiro.
Este último texto (transcrito abaixo) foi sobre as questões acerca do feminismo presente (ou a sua ausência) em algumas palavras. A tão discutida palavra "presidenta" preconizada pela recém-eleita Dilma Rousseff e, pouco antes, por Pilar del Rio é um dos exemplos. Não tendo a pretensão de discutir questões muito acima das "linguístico-semânticas", a dúvida-provocação que lanço é... Por que motivo discutir a introdução do género feminino de uma palavra que, à partida, é neutra? Não me parece ser uma questão feminista discutir semelhante causa. Considero-me total defensora da igualdade de direitos de género e, precisamente por isso, não me sinto ofendida em momento algum com as palavras neutras. Ou enquanto substantivo, só admite o masculino e estou mal-informada? Se calhar, o problema reside na definição do significado da mesma. De qualquer maneira, é possível encontrar a seguinte nota: Presidente-Nota: como substantivo, admite também um feminino menos usado: presidenta.
"A recém-empossada Presidente do Brasil, Dilma Rousseff, proclama-se “presidenta”, reivindicando a desinência gramatical do feminino para a palavra que designa o cargo. Sophia de Mello Breyner Andresen, pelo contrário, não gostava de ser nomeada como ‘poetisa’ — mas sim como ‘poeta’ —, porque a palavra vem carregada de conotações de menoridade. Em ambos os casos, o que está em questão é a ideologia e os valores que se alojam na linguagem, modelada por um poder que nela se inscreve. Mas a ‘poeta’ e a ‘presidenta’ pensaram de maneira oposta o uso de tais palavras: Sophia entendeu que devia apropriar-se da palavra ‘poeta’ e que esta teria de adequar-se e ceder nas suas prerrogativas histórica e culturalmente sedimentadas; Dilma, pelo contrário, entendeu que devia forçar o dispositivo gramatical do masculino, exercer uma pequena violência (de resto, bastante menor do que o acontecimento que está na sua base) suscetível de acrescentar à palavra um suplemento de verdade histórica.
O que é interessante verificar é que ambas as atitudes podem ser consideradas provas de afirmação de um sujeito feminino. Sophia obriga a palavra ‘poeta’ a designar o que ela tem alguma resistência a dizer, a transpor diferenças e a vergar-se à autoridade de quem a reivindica. Sem alterar nenhuma convenção no plano gramatical, exerceu sobre a língua, tal como ela é falada, um efeito. Dilma, por sua vez, entendeu que tinha acedido ao estatuto de quem pode exercer uma correção linguística e reorientar o valor das palavras. Se Sofia não tivesse sido uma grande poeta, a sua reserva teria sido algo ilegítima; se Dilma não for uma grande presidenta, isso não diminui os efeitos da sua operação linguística. Uma e outra lembram-nos Nietzsche: “Receio que não nos possamos desembaraçar de Deus enquanto acreditarmos na gramática.” "
António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 8.1.2011.
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